Gostar de ficar sozinho, contemplar a solitude e saber que não se trata de algo depressivo ou motivo para se preocupar. A partir da terceira etapa do meu Caminho de Santiago de Compostela, comecei a encontrar meu ritmo e pedalar de acordo com o que havia imaginado que deveria ser durante a longa preparação. Porém, nos primeiros dias, como relatei em textos anteriores, o cansaço, ansiedade e o receio por conta de fatores externos me impediram de aproveitar a pedalada como pretendia ter feito. Mas assim é a vida. Na maioria das vezes ela não acontece exatamente como planejamos e acaba moldada por situações que estão fora da nossa competência. Depois de Saint Jean Pied Port, Pirineus, Roncesvalles, Zubiri e Pamplona, é hora de abrir um pouco mais do meu diário de viagem nas etapas de Puente La Reina, Estella, Logrono e Belorado, além da expectativa para chegar à grande cidade de Burgos, escolhida por muita gente pela distância até Santiago – 500 quilômetros, seus atrativos culturais e condições do terreno para caminhar ou pedalar.
Alto do Perdão: Monumento construído pela empresa que administra o parque eólico e a Associação dos Amigos do Caminho de Santiago
De Pamplona a Estella, passando pela “ponte da rainha”
Tive uma noite bem dormida no albergue Plaza Catedral, acordei cedo e aproveitei para um café da manhã reforçado no próprio estabelecimento. Hora de deixar a bela cidade de Pamplona, mas ainda precisava conhecer um famoso atrativo turístico, a Praça dos Touros e o monumento em homenagem às touradas. Fiquei imaginando como deve ser no mês de julho, com as ruas da parte antiga tomadas pelos touros e pessoas na festa de São Firmino. Apesar de cidade grande, a sinalização do Caminho é perfeita, levando tranquilamente em direção à próxima etapa. Deixei Pamplona com vontade de ter ficado mais um pouco, conhecido melhor o antigo povoado cercado por uma grande muralha e onde a parte mais nova e moderna harmoniza com os trechos históricos. Mas era preciso seguir em frente. Mais uma analogia a vida.
Puente La Reina, construída no século XI para facilitar a passagem de peregrinos. Na "ponte da rainha" se juntam todas as rotas francesas
No sentido do Alto do Perdão, novas experiências. Chuva, os primeiros campos floridos e um vendaval. E como ventou, de desequilibrar a bicicleta em vários momentos. Mas essa condição faz parte do lugar, estando no topo da montanha equipamentos para transformar a ventania em energia elétrica. Aliás, no final dos anos 90 a empresa que administra o parque eólico e a Associação de Amigos do Caminho instalaram no local esculturas em homenagem aos peregrinos. Em uma delas está a frase "onde se cruza o caminho do vento com o das estrelas". Queria muito estar ali. É um local icônico e importante na história recente da rota de peregrinação, mas quem está de bicicleta precisa empurrar no trecho final da subida por conta da inclinação e pedras soltas. A descida do outro lado, por sua vez, também requer muita atenção. O tamanho e volume de pedras aumentam consideravelmente, sendo necessário descer bem devagar e atento para evitar um tombo.
A tradicional Fonte Irache, que oferece gratuitamente o "vinho para dar vitalidade aos peregrinos que seguem para Santiago de Compostela"
Nessa etapa meu desejo só era maior pela localidade seguinte, Puente La Reina. A arqueada ponte, construída no século XI, a mando de uma rainha para facilitar a passagem dos peregrinos, é realmente um espetáculo em arquitetura, com o cenário completado pelo esverdeado Rio Arga. Mais um momento que transportei dos meus sonhos para a realidade. Atravessei bem devagar, contemplando cada pedra com tanta história. Outro fator relevante em Puente La Reina é que se juntam ali todas as rotas oriundas da França.
Dezenas de plantações de trigo e flores a partir de Estella. Caminhos bons para pedalar ou caminhar e se encontrar espiritualmente
De Estella a Logrono, o encontro com o Caminho
O dia começou bem gelado em Estella. Um café com leite no albergue dos Capuchinhos ajudou a aquecer para iniciar a etapa onde fica um grande atrativo histórico a ser contemplado, a Fonte Irache. Oferecido pela bodega de mesmo nome, o vinho é um estímulo ao peregrino desde a Idade Média. Muitos enchiam garrafas, mas dei somente uma "bicada" pela lembrança que levarei para a eternidade. Cerca de um quilômetro acima, o visual para um aglomerado rochoso que lembra a nossa Chapada Diamantina era um convite à fotografia. E, ao parar para registrar, o colega ciclista que havia conhecido no dia anterior desapareceu no meio dos peregrinos. André acelerou. Gente fina, com o mesmo sonho e luta que eu para estar ali. Mas naquele momento estávamos em ritmos diferentes. Ele tinha mais pressa para concluir e eu não pretendia correr a não ser que fosse necessário. Havia muito que ver, que sentir. Torres Del Rio, Los Arcos, Viana, Vilamayor de Bonjardim… Foram muitas pequenas comunidades com mais de mil anos de história. Entre elas, os campos de trigo, as coloridas crotalárias e o vento… De novo ele, forte e contra. Mesmo com longos trechos planos, era difícil lutar contra a força da natureza. Em alguns momentos, ele fez o papel do freio… E, nessa luta entre querer ver tudo e pedalar contra o vento, cheguei a Logrono. Capital de La Rioja, cidade grande onde é mais difícil achar os albergues. Me hospedei bem perto da catedral, um imponente templo religioso e de arquitetura. Passei um tempo imaginando a sua construção, o difícil trabalho dos artistas e a conclusão de um monumento sem igual no mundo. Nesse dia ganhei mais do que conhecimento cultural: Encontrei meu ritmo e me realizei na solitude que, para a grande maioria das pessoas, parece ser apenas solidão. Foram 52 quilômetros, com 901 metros de altimetria acumulada.
Longos trechos planos ou com descidas, cortando plantações de trigo e flores, um espetáculo diferente na rota de peregrinação
De Logrono a Belorado, as plantações de uva e mais um vendaval
O dia começou com chuvisco em Logrono e me equipei para tal, mas o Sol logo abriu. Na saída, um bonito espelho d'água que tanto vi nas minhas pesquisas, La Grajera. Mas a surpresa maior estava a poucos metros, a barraca do lendário peregrino Marcelino Lobato. Muito requisitado, não consegui umas palavras, mas pelo menos tive a credencial carimbada. Nos quilômetros a seguir cruzei muitas plantações de uva. Viva La Rioja. Se estivesse na época da colheita, teria muito lanche pelo caminho. Por um longo período, pude admirar as lavouras e mais uma vez “curtir minha solidão”. Entre as muitas pequenas localidades que cruzei, destaque para Navarrete e Santo Domingo de La Calzada. Na segunda, fiz um lanche na cafeteria de uma brasileira. O marido, espanhol, também muito simpático. Nesse dia a ventania “se superou”. Foram mais de 20 km de luta contra um vendaval. Pedal duro e difícil onde deveria ser fácil, sendo preciso exercitar as pernas até morro abaixo…
Foram 74 quilômetros e 1.180 de altimetria acumulada. O dia que começou com chuvisco e frio terminou com um bonito Pôr do Sol em Belorado. Consegui vaga no albergue A Santiago, bem na entrada do povoado e que oferece ainda restaurante e até uma piscina. Hora de descansar para pedalar em direção a Burgos, famosa pela imponente catedral em estilo gótico. Estava na minha programação curtir bastante essa cidade, mas essa etapa reservaria uma grande surpresa para mim. Até a próxima semana, onde abrirei mais esse capítulo do meu diário.
O projeto “Teresópolis no Caminho de Santiago de Compostela” teve apoio da Trilhas & Rumos, Cycle São Cristóvão, Top Spin, Corpo & Ação, Jornal O Diário e Diário TV.
Buen Camino! A mensagem é comum aos peregrinos e bicigrinos, mas é preciso estar aberto para recebê-la ou profetiza-la