Marcello Medeiros
Sonhar é fundamental para amenizar as dores e dificuldades da vida, para ajudar a enxergar um caminho mesmo quando se enfrenta desertos que parecem insuperáveis. Se imaginar em algum lugar e trabalhar para que esse sonho se realize é um excelente remédio para as asperezas do dia a dia. E, em muitos casos, esses momentos especiais muitas vezes continuam embalando pensamentos melhores por muitos e muitos anos após terem sido vividos. Um grande exemplo disso é o da teresopolitana Lilia Montanha, de 86 anos, moradora da Várzea. Setenta e um anos atrás, acompanhada de amigos e familiares, ela conseguiu vencer os medos e desafios e pisou no cume do Dedo de Deus, montanha ícone da Serra dos Órgãos e considerada o símbolo da escalada no Brasil. Tanto tempo depois, ela ainda lembra quase que em detalhes a escalada que marcou a sua vida. “Fecho os olhos e me vejo lá, vencendo as chaminés, olhando para os abismos. Nunca vou esquecer aquele 17 de julho de 1949”, conta Lilia, que, nessa data, além de uma realização pessoal, acabou entrando para a história do nosso município: ela foi a primeira teresopolitana a conquistar essa montanha, que até, hoje, mesmo com a modernização dos equipamentos e maior facilidade para conseguir informações sobre a escalada, ainda é considerada um desafio para muita gente.
Nunca é demais lembrar que a história da conquista do Dedo de Deus e do início da prática desse esporte no país estão intimamente ligadas com Teresópolis. Em 08 de abril de 1912, um grupo de moradores do município foi o primeiro a pisar naquele cume, a 1.692m de altitude. José Teixeira Guimarães, Raul Carneiro e os irmãos Américo, Acácio e Alexandre de Oliveira provaram que os brasileiros tinham condições de ter sucesso nas escaladas – apesar da falta de técnica e equipamentos. Eles se aventuraram montanha acima motivados pela provocação de um grupo de alemães, que havia sido vencido pelo Dedo e dito “que se eles não conseguiram, ninguém conseguiria”. A partir daí, a escalada deslanchou no Brasil.
Registro da empreitada, 71 anos atrás. Grupo composto por várias crianças chegando ao último lance da escalada
​Apenas 21 anos após a conquista uma mulher chegou ao topo do Dedo de Deus. A carioca Luiza Caracciolo realizou o feito aos 19 anos, em 1933. Em 1949, foi a vez da teresopolitana escrever seu nome na história do montanhismo local. Escondida da mãe, Lilia participou da aventura ao lado de Geny Cardoso, Ilka Montanha e os meninos Renato Nogueira Marques, Carlos Simão Arbex, Kival Simão Arbex, Haroldo Falcão, Theodoro Silva, Abdux Arbex, Edmundo Montanha, Julio Américo de Oliveira e Adilson Falcão da Graça. Eles foram levados pelos montanhistas Paim e Miguel Inácio Jorge, um dos conquistadores da Verruga do Frade e conhecido como “Senhor da Torre” por ter sido o responsável pela manutenção na Matriz de Santa Teresa por várias décadas. “Minha mãe achava que era perigoso demais, mas eu queria e fui incentivada pelo meu irmão, Edmundo. Não queria mais ficar fazendo só caminhada, queria escalar o Dedo de Deus e das três meninas era a mais nova e fui a primeira menina a pisar naquele cume maravilhoso”, conta ela, que também já esteve em outras montanhas como Verruga do Frade e Pedra do Sino.
Acidente
Em outubro de 1966, um acidente de carro na estrada Rio-Teresópolis impossibilitou Lilia de fazer o que mais gostava. Paralítica por um longo tempo, recuperou os movimentos e, mesmo de bengala, passou a fazer caminhadas pelo Centro – até cerca de dois anos atrás. Hoje, mesmo sem poder andar, ela mantém sua paixão pelas formações rochosas da região e continua sonhando diariamente em escalar novamente o Dedo de Deus. Aliás, montanha é seu sobrenome de verdade, não um apelido por conta do feito que se tornou histórico. Lilia do Nascimento Montanha. Ou seja, uma mulher que realmente nasceu para esse esporte.
Homenagem
Poucos anos atrás, Lilia foi homenageada pelo Centro Excursionista Teresopolitano. Ela participou de uma reunião social do clube, principal entidade de montanhismo do município e única filiada à Federação de Esportes de Montanha do Estado do Rio de Janeiro, a Femerj, onde recebeu a carteirinha de associada do CET e um quadro com uma foto comemorativa lembrando o feito, que inspira os novos praticantes desse esporte. Lilia também contou suas histórias nas montanhas e outras “peraltices” que aprontou quando jovem, como sair com o elefante de um circo que estava na cidade. Mas os momentos que mais emocionaram os associados do CET foram aqueles que ela recordou as dificuldades da escalada de 1949. “Ficamos muito felizes por ter essa oportunidade de homenagear uma pessoa tão importante para o montanhismo teresopolitano, a primeira mulher da nossa cidade a chegar ao topo de uma montanha como o Dedo de Deus, cuja escalada é um desafio ainda nos dias de hoje, dirá mais de 70 anos atrás. Além disso, o sentimento que ela tem pelo esporte até hoje, mesmo não podendo praticar, é outra coisa que mexe com a gente”, lembra o experiente Leandro Nobre, um dos diretores do CET.