Que loucura! Iniciamos o processo de emendar a Constituição para derrubar emendas já feitas e fazê-la retornar à origem. Eis aí o sentido da Proposta de Emenda Constitucional chamada pelos aliados do governo de PEC da Blindagem e de PEC das Prerrogativas pelos demais.
Vejo todos os dias o que acontece no Congresso Nacional e tenho saudades de outros tempos e essa saudade me aborrece, pois ela me disse que sim, houve uma época, não tão longe desta, que os componentes das duas Casas tinham mais responsabilidade com quem representavam.
A falta de qualidade dos legisladores faz com que o processo legislativo brasileiro seja insano. Em 1986, elegemos deputados federais e senadores com a obrigação de, em nosso nome e com a nossa participação, criarem uma Constituição. Cumpriram o combinado e fizeram uma Carta com 250 artigos. Apesar disso e, talvez também por isso, a obra não era perfeita, como imperfeitos somos todos. Por conseguinte nela estão autorizadas uma revisão e emendas de adaptação presente a premissa inviolável, pétrea: “Todo o poder emana do povo…”.
Hoje já há na Constituição 134 remendos e se sabe que existe uma fila de espera com quase 300. A PEC das Prerrogativas (PEC da Blindagem) é o remendo do remendo para fazer a Constituição voltar à origem, no que diz respeito às prerrogativas parlamentares.
O artigo 53 da Constituição criado pelos legisladores de 88 assegurou aos parlamentares imunidade material (por opiniões, palavras e votos) e prerrogativas processuais mais amplas para que “todo o poder emane do povo que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos.” Portanto, as prerrogativas não são o salvo-conduto dos representantes, mas uma garantia para os representados.
Sob pressão, com muito medo da opinião da imprensa e por não compreender exatamente o sentido da imunidade e das prerrogativas, os parlamentares instituíram, em 2001, a Emenda 35 para permitir que eles mesmos pudessem ser processados sem prévia autorização da Casa Legislativa ou seja, dos demais representantes do povo. Agora, vendo a besteira que fizeram, os deputados e senadores querem revogar a Emenda 35 para retornarem ao texto original e ir além para incluir os presidentes dos partidos, os maiores responsáveis pela queda da qualidade da representação.
Ocorre que esse vai e volta não é apenas um exercício de técnica legislativa — é a demonstração de que há falta de estabilidade institucional. O Congresso reafirma que para ele a Constituição não é um marco sólido e garantia para os representados, mas um instrumento de disputas conjunturais entre os representantes.
Agora volto à razão das prerrogativas. Elas não são para proteção de assassinos nem de ladrões e menos ainda de bajuladores dos agentes do Estado. Elas existem para defesa dos representados todas as vezes que o Estado invista contra a vontade dos eleitores e do poder nas mãos do povo.
Quando os representantes do povo perdem a liberdade de expressão e prerrogativas para defender os representados das ações ilegais dos agentes do Estado (juízes, procuradores, policiais e até mesmo legisladores), os representados são entregues aos verdugos de plantão.
Em abril de 1976, eu com 23 anos de idade, estava no edifício do Congresso Nacional quando um homem honrado, Lysâneas Maciel perdeu o mandato por dizer o que seus representados gostariam de dizer. O Presidente do Senado, um covarde bajulador do General Geisel, pronunciou-se. Disse ele: “O ato de ontem é um ato excepcional contra uma excepcionalidade no mundo político, porque o deputado cassado era um corpo estranho, deslocado da disciplina partidária e desafeto da própria conduta partidária, vale dizer, do MDB, era algo que precisava ser expelido, para assegurar não só a paz interna no seu partido, como o constante aperfeiçoamento das práticas democráticas. O ex-deputado foi alguém que fazia provocação diariamente, no Congresso e fora dele. Onde quer que se encontrasse, investia, lançava toda a sorte de agravos inclusive contra o Presidente do seu Partido (Sessão do Senado, 02.04.1976).
O deputado Lysâneas me representava. Duvido muito que o Senador Petrônio Portella, com aquelas palavras, representasse de fato o povo do Piauí. Sem as prerrogativas que hoje quase ninguém entende o motivo de existirem, muitos ficaram pelo caminho na luta pela democracia.
