Mochileiro – Marcello Medeiros
Quando comecei a organizar a cicloviagem pelos Pirineus, dois anos atrás, fiquei encantado com a beleza dessa cadeia de montanhas. Porém, analisando o roteiro mais a fundo, percebi que ele poderia ficar ainda melhor. No quinto dia de pedal, passaria a apenas 30 quilômetros de distância da Andorra. Assim, coloquei mais um dia na programação para conhecer esse principado entre França e Espanha. Mais algumas etapas depois, uma nova descoberta: a rota que estava seguindo pela Transpirenaica passava a cerca de 60 quilômetros de distância de ícones do Tour de France, a prova ciclística mais antiga e famosa do mundo, evento que para esse país anualmente e que faz lembrar a reverência ao futebol em cada etapa disputada. Assim, logicamente, não poderia deixar de aproveitar a oportunidade de vivenciar essa experiência.
Meu acesso à França foi pela rodovia D934, depois de subir 14 íngremes quilômetros na A136, na Espanha, chegando ao encontro das duas no “Col de Portalet”, que se eleva a 1.794 metros de altitude e está na área do Parc National dos Pyrénéos. Havia acampado em Escarilla, saindo bem cedo para aproveitar o frescor das primeiras horas do dia montanha acima e com o objetivo de chegar cedo à linha imaginária que divide os dois países, podendo assim tentar absorver ao máximo a energia mágica dessa região. Encontrei dezenas de ciclistas de “roads”, as bicicletas de estrada, muito provavelmente inspirados no Tour de France para vencer tantos quilômetros montanha acima. No sentido contrário que fiz, portanto da França para a Espanha, é o dobro da distância e provavelmente também da altimetria acumulada… Mas o entorno recheado de montanhas, os pequenos povoados, os rebanhos de ovelhas, entre outros, faz o atleta esquecer que precisa de muita dedicação para concluir essa jornada.
Chuva inesperada
Minha ideia era seguir direto da Espanha para o cume do Col de Aubisque, um dos icônicos trechos do Tour, que inclusive passou por lá dois meses antes de mim, e lá, na casa dos 1800 metros de altitude, realizar um acampamento selvagem. Porém, a previsão indicava uma forte tempestade naquela tarde e, por conta disso, optei em seguir diretamente para a Vila de Laruns, onde fiquei por duas noites.
Experiência de vida
No dia seguinte, mais chuva. Somente lá pelas 13h o clima melhorou um pouco. Mesmo com chuvisco e muito frio deixei a maior parte dos equipamentos no camping e segui para o Aubisque. Não poderia deixar de vivenciar a experiência de percorrer a mesma estrada por onde centenas de atletas já passaram disputando metro a metro um lugar ao Sol, montanha acima, como se estivessem pedalando no plano. E, apesar da adversidade climática, valeu cada segundo. Ainda estavam na pista as pinturas feitas para incentivar os ciclistas e, a cada quilômetro, as placas indicando inclinação e distância para o cume. Impossível não imaginar a gigante torcida vibrando com a passagem dos pelotões. Quando cheguei ao topo da montanha, as gigantes esculturas das bicicletas, em homenagem à prova, deram o sinal que eu havia concluído a jornada. Mesmo com todo o entorno tomado pelas nuvens, por vezes não enxergando mais do que um metro à frente, estava feliz por demais para reclamar de qualquer coisa.
Mais Tour
O objetivo inicial era conhecer também o Col de Soulor, mas as condições climáticas, que atrasaram o horário de saída, me impediram. A descida de volta para Laruns, passando por Gourette e Eaux-Bonnes, foi bastante gelada e com muita prudência para evitar um tombo, por exemplo. Mesmo sem avistar as imponentes montanhas pirenaicas, dormi feliz demais por ter pedalado nessa região. Para voltar para Espanha, escolhi outro caminho. Subi o Col de Marie Blanc, que em 2023 vai receber o Tour de France, e desci em Escot, na França, pegando a rodovia N134 até o Col de Somport, nova fronteira com terras espanholas e onde, nesse país, já ocorreu etapa de “La Vuelta”. O retorno foi bem longo, quase 100 quilômetros e 2.308 metros de altimetria acumulada, tendo chegado em Castiello de Jaca bastante cansado – mas proporcionalmente realizado.
Caminho no caminho
Além de beleza ímpar, o povoado de Laruns, onde fiquei acampado, tem diversas lembranças e referências ao Tour de France, inclusive uma pequena oficina de bicicletas aberta ao público, com temática dessa importante prova. Na próxima coluna vou falar sobre o reencontro com o Caminho de Santiago, que cruza a travessia dos Pirineus. O projeto “Teresópolis na Transpirenaica” tem o apoio da Trilhas e Rumos, Cycle São Cristóvão, Dafel, jornal O Diário e Diário TV.