Cristina Índio do Brasil – Repórter da Agência Brasil
Os tiroteios em diversas partes do Rio de Janeiro transformaram os meios de comunicação entre moradores da cidade, que estão usando, cada vez mais, a internet para transmitir informações de utilidade pública na região. A população se apropriou de aplicativos para chamar a atenção para os conflitos no momento em que estão ocorrendo, como forma de se proteger do perigo nos deslocamentos dentro das próprias comunidades ou na volta para casa.
No Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, o jornal Voz da Comunidade, que completa agora em agosto 12 anos, foi criado com o objetivo de comunicar as atividades ligadas à cidadania, com uma cobertura de cidade para cobrar direitos e serviços. No entanto, com o aumento da violência no local, os moradores passaram a usar o WhatsApp do jornal para se comunicar sobre a ocorrência de tiroteios que costumam ser frequentes por lá.
“Para o relato de morador sobre tiroteio, a gente usa o WhatsApp, até para não contaminar, porque no jornal a gente dá a notícia voltada para o serviço de cidadania e a cobertura de cidade. Para falar de tiro, a gente só usa o WhatsApp. O Complexo do Alemão tem 13 favelas. A gente tem grupos no WhatsApp nessas 13 favelas e aí faz a transmissão. No WhatsApp são muitas pessoas pedindo, por dia, para entrar nos grupos. É muita gente. As nossas redes sociais são para comunicar não só histórias positivas dentro da favela, mas também problemas sociais como lixo, casa caindo. ”, contou à Agência Brasil a jornalista Maria Carolina Morganti, de 25 anos, que atualmente é chefe de redação do Voz da Comunidade.
No período de 12 anos, o jornal se expandiu e passou a ser distribuído em mais 15 comunidades, como a Maré e a Cidade de Deus, com informações voltadas para a cidadania. Para Maria Carolina, o valor social das comunicações extrapolou para o novo meio. “A gente alerta [no WhatssApp] os moradores por onde ir. A gente apura. O caveirão [carro da Polícia Militar] está lá, não vai. É muito funcional. O que está em jogo é a vida dos moradores. É um aplicativo gratuito que funciona bem”, disse.
No site Fogo Cruzado, criado para divulgar informações que servem para estudos sobre onde e quando ocorrem os tiroteios, os dados são atualizados frequentemente. O site conta ainda com a publicação de estudos feitos em parceria com a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV/DAPP). A jornalista Cecília Olliveira, gestora de dados do Fogo Cruzado, disse que a utilização das informações vai depender do perfil de quem acessa a página – podem ser pesquisadores ou a imprensa, para contextualizar as questões de violência no estado. Há também quem procura se inteirar se perto de casa tem um tiroteio ou em algum lugar para onde está indo. Os dados são abertos.
Aplicativos
Segundo Cecília, a sensação de insegurança muito grande na cidade levou as pessoas a se comunicar mais. Ela alertou que, por isso, aumentou o número de boatos nas redes sociais. “As pessoas estão atemorizadas. Elas realmente buscam mais informação sobre o que está acontecendo, como, onde e porque. Tem inclusive a porta aberta para os boatos”, acrescentou.
De acordo com a jornalista, o Fogo Cruzado tem a preocupação de checar as informações que recebe para garantir a distribuição de dados de qualidade. “Temos vários filtros nas redes, em que conseguimos cruzar as informações de mais pessoas. Então, a gente consegue fazer o cruzamento de informações e saber se tem outras ocorrências na mesma área. Geralmente, quando há uma situação assim, várias pessoas estão falando sobre a mesma coisa”, disse.
Cecília Oliveira revelou que o número de downloads do aplicativo tem aumentado mês a mês e já atingiu 95 mil pessoas, que podem acompanhar os dados por meio do celular. No Twitter, o Fogo Cruzado tem 5.834 seguidores, que são atualizados sobre a ocorrência de tiroteios com base nas informações passadas ao site.
Transtornos
Para a psicóloga e pesquisadora do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPU B) Herika Cristina da Silva, a violência urbana chegou a um nível tão elevado que as pessoas estão com medo exacerbado e sobressaltadas com a necessidade de colher informações sobre a ocorrência de algum evento. Ela destacou, no entanto, que a utilização dos aplicativos para esse fim pode piorar a situação. “A utilização do aplicativo é também difícil porque, ao mesmo tempo em que pode ajudar a sair de uma situação de violência, acaba levando a pessoa a ficar cada vez mais exposto ao conhecimento dessas situações. Pode ajudar a aumentar o nosso medo e essa sensação de vulnerabilidade e de insegurança, porque a pessoa se expõe a mais situações”.
Na visão da psicóloga, o impacto da violência urbana, em geral, na saúde mental das pessoas tem sido comprovado em estudos. Pesquisas mostram que o aumento da violência interpessoal tem potencial maior para causar Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT). “O aumento da violência no Rio de Janeiro, nos últimos tempos, vai ter impacto muito grande, já que a violência urbana afeta a vida das pessoas até mais que outros traumas. Então, há um aumento dos transtornos pós-traumáticos nos moradores do Rio de Janeiro, que são desencadeados por eventos traumáticos, mas também transtornos de ansiedade e depressão”, contou.
O TEPT começa a ser sentido com algumas mudanças no comportamento pós-traumático. Pode ser observado logo após a pessoa ter vivenciado um evento como um assalto e, na sequência, passar a ficar com muito medo, ser hipervigilante e sobressaltada com sintomas de excitação, sem sair de casa, evitando falar do assunto, mas também pode acontecer de forma mais tardia. “A pessoa pode até passar um tempo, ficar normal e depois começar a apresentar as diferenças de comportamento e humor. É importante que, após algum evento traumático, a pessoa fique atenta a alguma mudança no seu comportamento ou no humor para ver se não está desenvolvendo um transtorno em decorrência disso. O TEPT é a sequela mais prevalente e até mais grave em decorrência de eventos traumáticos”, disse.
Efeitos nos alunos
De acordo com dados do estudo Educação em Alvo – Os Efeitos da Violência Armada nas Salas de Aula, feito pela FGV/DAPP, em parceria com o aplicativo Fogo Cruzado, entre julho de 2016 e julho de 2017, a cidade do Rio de Janeiro registrou 3.829 tiroteios. O município tem 1.809 instituições de ensino fundamental e médio e 461 creches e serviços de educação infantil.
Os pesquisadores identificaram áreas de prioridade de ações de políticas públicas com base em dois critérios – o primeiro de concentração territorial de escolas e a incidência de tiroteios/disparos de arma de fogo e o segundo, apenas o número de tiroteios/disparos de arma de fogo. Conforme a avaliação, os bairros que concentram maior número de escolas municipais, estaduais e creches expostas à violência armada são Costa Barros, Acari e Cidade de Deus.
A maior parte dos registros de tiroteios/disparos de arma de fogo se concentra na zona norte, com maior ocorrência nas regiões do Complexo do Alemão (218 registros) e da Maré (119 registros). Outra área que chamou a atenção foi a das imediações da Avenida Brasil, na altura do bairro da Penha (128 registros). O objetivo da pesquisa é pensar em políticas públicas que atendam às diferentes necessidades de crianças e adolescentes em idade escolar que vivem em áreas vulneráveis, com alto índice de violência, especialmente a armada.
Para a psicóloga Herika Cristina, os alunos das unidades localizadas em áreas de conflito estão sujeitas ao Transtorno de Estresse Pós-traumático. “Também podem ser fortemente afetadas até porque há uma nova experiência de trauma. Elas podem passar por diversos traumas – se a escola é fechada recorrentemente, se há vários confrontos, além da consequência de cancelamento de aulas e de ter que voltar para casa. Vários traumas acontecendo de maneira recorrente. Isso aumenta a chance de a criança desenvolver sintomas de ansiedade e de depressão porque também é suscetível a isso. Elas são bem afetadas”, disse.
Atendimento psicológico
A especialista defendeu a necessidade de manter equipes de atendimento psicológico nas escolas localizadas em regiões de conflitos entre criminosos e a polícia. “Toda escola deveria ter psicólogo. É muito importante”, afirmou.