MOCHILEIRO – Marcello Medeiros
Foram aproximadamente dois anos organizando, sonhando e me imaginando atravessando as montanhas dos Pirineus, molhando os pés no Mediterrâneo e semanas depois no Mar Cantábrico. Pelo projeto inicial, pretendia realizar a Transpirenaica em 19 dias, mas foram necessários 22 para percorrer o difícil trajeto montanhoso entre Espanha, Andorra e França. Os primeiros quilômetros foram de muita ansiedade, como geralmente ocorre quando mergulhamos no desconhecido, mas os últimos foram de completa felicidade e realização por ter conseguido concluir o que me propus a fazer. Logicamente, como citado, foi necessário mudar o roteiro, esticar o tempo de viagem, passar por estradas que não pretendia, experimentar situações diferentes das que havia imaginado, mas tudo isso é uma grande analogia a vida. Em um bom darwinismo, é preciso se adaptar para continuar em frente. Assim, no final dos 1.245 quilômetros percorridos entre Llançá, Girona, e Hondarribia, no País Basco, eu estava bem diferente do ciclista que havia desembarcado no aeroporto de Barcelona semanas antes. Havia crescido como pessoa e ganhado muito mais do que perdido ao tomar decisões necessárias para a viagem fluir melhor.
No último dia de pedal, saí de Saint-Jean-Pied-Port, na França, onde se inicia o Caminho Francês de Santiago de Compostela. Pela rota original da Transpirenaica, deveria retornar em direção à Espanha e seguir por trilhas e montanhas até chegar a Irun e posteriormente ao destino final. Porém, pelo que apurei nas minhas pesquisas, essa rota é bastante mutável e, dificilmente, alguém a percorre exatamente pelo trajeto idealizado mais de duas décadas atrás. Assim, resolvi seguir pela rodovia D918 até outra Saint-Jean, agora a “de Luz”, também na França. Mais uma simpática cidadezinha que merecia ter ficado um pouco mais para conhecer. Ali, o primeiro contato visual com o mar novamente.
Mas não fui à beira-mar. Peguei outra rodovia, a D912, margeando o Cantábrico até o povoado de Hendaye, onde cruzei a fronteira para a Espanha pela última vez. Já estava em Irun, cidade onde, aliás, tem início outra rota que leva a Santiago de Compostela, o Caminho do Norte. Apenas uma passada rápida e toquei em frente até a praia de Hondartza, em Hondarribia, para o reencontro oficial com o mar. Dessa vez, infelizmente, não foi possível me banhar – como fiz no Mediterrâneo. Somente molhei os pés, senti o geladinho do oceano Atlântico Norte e comemorei a finalização, com sucesso, desse grande desafio. Em seguida, toquei para o camping Faro de Higuer, no topo de uma “montanha”, ao lado do farol de mesmo nome, onde montei minha barraca Cota 1, da Trilhas & Rumos, pela última vez. E, agora, com uma vista espetacular para as ondas quebrando nas rochas ao lado do Cabo Higuer.

É muita subida!
Além da longa distância, outro diferencial dessa cicloviagem é a quantidade de montanhas subidas e descidas. No total, 31.137 metros de altimetria acumulada e quase o mesmo número no sentido inverso. Outro fator que precisa ser observado é os terrenos difíceis que precisei atravessar, íngremes e pedregosos, portanto impossíveis de serem vencidos pedalando uma bicicleta carregada com roupas, ferramentas para uma eventual manutenção e material de cozinha e camping. Mas empurrei onde foi preciso empurrar com grande felicidade, comemorando a oportunidade de poder realizar tal caminho que, pelo que constatei em extensa pesquisa, foi realizado em sua totalidade por um brasileiro pela primeira vez.

“Viva o que te faz feliz”
No 19º dia de pedalada, logo após sair de Hecho, chorei copiosamente quando serpenteava um incontável número de curvas montanha abaixo. O dia havia acabado de começar e eu escutado “That´s My Way”, de Edi Rock. Parte da letra dessa canção mexeu demais comigo: “Eu gosto de pensar que a luz do Sol vai iluminar o meu amanhecer / Mas se amanhã o Sol não surgir, por trás das nuvens cinza tudo vai mudar / A chuva passará e o tempo vai abrir / A luz de um novo dia sempre vai estar / Pra clarear você / Pra iluminar você / Pra proteger / Pra inspirar e alimentar você”. O motivo: tal música me transportou para meia dúzia de anos atrás, quando enfrentava uma pesada depressão. Saí dela graças à bicicleta, ao Caminho de Santiago, ao novo rumo que busquei quando decidi que precisava encontrar um jeito diferente de experimentar a vida. “A luz de um novo dia me iluminou”, mas precisei passar pelo Inverno para aproveitar o Verão. Se não fosse a escuridão, não teria buscado a luz.
E é essa mensagem que quero deixar no encerramento dessa coluna especial. “Viva o que te faz feliz”. Vi essa frase no Caminho da Fé, que realizei em 2021, portanto mais uma conquista pós-depressão, e hoje carrego comigo como um mantra. Outros caminhos virão. Outras novas vidas virão. Para cima, sempre. O projeto “Teresópolis na Transpirenaica” tem o apoio da Trilhas e Rumos, Cycle São Cristóvão, Dafel, jornal O Diário e Diário TV. Veja mais no Instagram /mochileiro_marcello
