Com os últimos acontecimentos na vizinha cidade de Petrópolis, onde as fortes chuvas ocasionaram deslizamentos em encostas, destruição de construções, alagamentos e, o mais grave, a morte de diversas pessoas, impossível não lembrar do ocorrido em Teresópolis e outras cidades da região serrana em 2011.
Impossível não ouvir repetidamente, tal qual em 2011, e ao longo dos anos que se seguiram, diversas manifestações do tipo: “ninguém faz nada”, “uma tragédia anunciada”, “a culpa é do prefeito”, “perdi tudo”… E ainda: “a culpa foi do grande volume de chuvas”, “ninguém poderia prever uma chuva assim”, “as pessoas é que não poderiam morar naquela área de risco”…
Tais impressões refletem uma dúvida comum sobre a existência de responsabilidade do Estado pelos prejuízos enfrentados pelos atingidos por tais tragédias, especialmente quando se trata de ocupação irregular em área de risco ou de proteção ambiental.
A questão ainda hoje é de difícil interpretação pelos Tribunais, exsurgindo de situações quase idênticas, decisões completamente diferentes.
Existem decisões que rejeitam a responsabilização do Estado, sob o fundamento de que, mesmo contra o Estado, deveriam estar presentes todos os elementos da responsabilidade civil, quais sejam, a conduta, o dano e o nexo de causalidade, posto que não poderia se tornar o Estado uma espécie de “segurador universal”.
Na esteira de tal entendimento, tanto eventual volume anormal de chuvas, quanto a própria ocupação indevida das encostas, aliados à falta de recursos do Estado para cumprir as suas obrigações, seriam suficientes para afastar o dever de indenizar.
Por outro lado, parte mais lúcida do Judiciário, partindo de premissas semelhantes, acaba por concluir de maneira diferente, reconhecendo que o poder público seria responsável pela reparação dos danos independentemente da averiguação de dolo ou culpa, amoldando a hipótese a uma conduta negativa do ente federativo, constituindo-se em omissão específica, ou seja, deixando de atuar quando deveria e poderia, de modo a evitar a tragédia, considerando, tal corrente de entendimento, que a tolerância da administração pública quanto à ocupação irregular de áreas de risco, assim como, com relação à adoção de outras medidas de caráter preventivo, como saneamento básico e coleta de lixo, seriam elementos suficientes à caracterização do dever do Poder Público indenizar os afetados.
Em visão aproximada da questão, no caso específico da tragédia de 2011 e aquela acontecida recentemente em Petrópolis, a responsabilidade pelos danos incumbe especificamente ao Município, a quem compete exclusivamente a promoção adequada do controle do uso e da ocupação do solo urbano, conforme artigo 30, incisos I e VIII, da Constituição Federal.
Embora não se possa deixar de lado a questão social, que impõe a ocupação irregular das áreas de risco nas encostas, uma vez que, na grande maioria dos casos a população ocupa tais áreas por falta de alternativa que caiba em sua renda, a omissão do Município não se limita à falta de fiscalização e tomada de medidas contra a ocupação irregular de tais áreas, mas também, à sua inércia em executar políticas públicas que ofereçam alternativa para que as pessoas vivam em outras áreas, em proteção, aliás, a outro princípio Constitucional, o direito à moradia, insculpido no artigo 6º da Carta Magna, e não por acaso está bem próximo ao artigo 5º, que traz a inviolabilidade do direito à vida, à segurança e à propriedade.
A vida humana é o bem jurídico de maior importância, sendo o princípio da dignidade da pessoa humana mencionado já no artigo 1º da Constituição da República, não podendo o Poder Público omitir-se, de modo a permitir que parte da população permaneça a residir em imóveis inapropriados, em áreas de risco, o que significaria tolerar a inadmissível exposição da vida humana a risco, e a tolerar a continuidade desta situação, com inúmeras famílias residindo em habitações sem dignidade.
A incidência de chuvas com elevados índices pluviométricos não é fato estranho na região, de sorte que as consequências do fato previsível poderiam ser evitadas ou minoradas mediante a adoção de medidas preventivas.
Mesmo que não pudesse fazer o ideal, competia ao Município executar as obras de contenção, drenagem, limpeza de terrenos e escoamento de águas pluviais nas áreas de risco, de molde a evitar ou pelo menos minorar os efeitos do dano, consubstanciando sua omissão na necessária conduta negativa capaz de ensejar a sua responsabilização.
Logicamente as chuvas são causadas pela natureza, sem que haja possibilidade de evitá-las, porém, a tragédia que ocorreu, ceifando a vida de centenas de pessoas e destruindo bens materiais, poderia ter sido evitada, pois não se pode dizer que o deslizamento das encostas era imprevisível, mormente em áreas que foram desmatadas e irregularmente ocupadas.
O Poder Público se apressa em socorrer as vítimas de tais tragédias, socorrendo-se o Município das verbas do Estado e da União, visando a construção de unidades habitacionais para realocar os desabrigados, quando poderia, por conta do patrocínio dos mesmos entes federativos, promover políticas habitacionais, promovendo e fomentando a transferência de tal população de tais áreas de risco para outros locais mais adequados e seguros.
Em Teresópolis, por exemplo, apesar da criação em 2008, do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (Lei nº 2.725/2008), com previsão de sua composição por verbas do próprio Município e repasse de outros fundos nacionais ou estaduais, contribuições e doações, com objetivo específico de promover ações vinculadas a programas de habitação de interesse social, como construção, recuperação, reforma, compra de materiais, implantação de saneamento básico, infraestrutura, equipamentos urbanos, etc, o fato é que tal iniciativa dorme em sono profundo desde sua criação, aguardando sua regulamentação há mais de dez anos, não se conhecendo a existência de uma moedinha sequer depositada em tal fundo, demonstrando que a omissão pode ser direta ou indireta, caracterizada não só pela inércia óbvia e visível, como também pela lerdeza burocrática e desinteressada, sendo ambas igualmente nocivas.
A chuva não castiga e nem desabriga ninguém, apenas revela uma injustiça sócio-econômica decorrente de uma política existente anteriormente, na qual se insere a omissão na promoção do direito à moradia diga e à inviolabilidade da vida humana.
Merece citação, por irretocável, trecho de artigo publicado na edição de 14/01/2011, no jornal O Estado de São Paulo , por ocasião da tragédia ocorrida na Região Serrana naquele ano, assinado pelo jornalista Marcos Sá Correa, que dizia: “É injusto, e talvez seja também cruel e exorbitante, que hoje não se processe no Brasil, por homicídio culposo, o político que patrocina baixas evitáveis e supérfluas em encostas carcomidas e vales entulhados por ocupações criminosas. No dia em que um prefeito, olhando as nuvens no horizonte, enxergar a mais remota possibilidade de ir para a cadeia pelas mortes que poderia impedir e incentivou, as cidades brasileiras deixariam aos poucos de ser quase todas, como são, feias, vulneráveis e decrépitas…”
Mais otimista, Raquel Rolnik, relatora da Organização das Nações Unidas – ONU para a questão da moradia digna, em entrevista concedida à TV Cultura, também em janeiro de 2011, perguntada sobre a possibilidade de solução para as perdas de vidas em várias cidades “por chuvas intensas” respondeu: “Tem solução, sim. Há formas de intervenção para melhorar a estabilidade dos terrenos, drenar melhor a água, conter encostas, ou seja, melhorar a condição de segurança e a gestão do lugar para que, mesmo numa situação de risco, se possam evitar mortes. Mas a questão de fundo é que ninguém vai morar numa área de risco porque quer ou porque é burro. As pessoas vão morar numa área de risco porque não têm nenhuma opção para a renda que possuem. Estamos falando de trabalhadores cujo rendimento não possibilita a compra ou aluguel de uma moradia num local adequado. E isso se repete em todas as cidades e regiões metropolitanas. Não adiantam nada as obras paliativas aqui e ali se não tocarmos nesse ponto fundamental que é: quais são os locais adequados, ou seja, fora das áreas de risco, que serão abertos ou disponibilizados para que a população de menor renda possa morar?”.
Finalmente, emprestando de uma das maiores especialistas no mundo em desastres naturais e estratégias para dar respostas a crises, Debarati Guha-Sapir, consultora externa da ONU e diretora do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres, a incisiva manifestação, também em entrevista ao Jornal O Estado de S. Paulo, em 14/01/201, ou seja, há mais de dez anos: “Brasil não é Bangladesh. Não tem desculpa para permitir, no século XXI, que pessoas morram em deslizamentos de terras causados por chuva. Só um fator mata depois da chuva: descaso político. “
O Brasil já viveu 37 enchentes, em apenas dez anos. É um número enorme e mostra que os problemas das chuvas estão se tornando cada vez mais freqüentes no País. Essas pessoas morreram, porque não têm peso político algum e não há vontade política para resolver seus dramas, que se repetem ano após ano. Não há desculpa para não se preparar ou se dizer surpreendido pela chuva. Além disso, o Brasil é um país que tem dinheiro, pelo menos para o que quer. O Brasil praticamente só tem um problema natural e não consegue lidar com ele. Imagine se tivesse terremoto, vulcão, furacões…
Em resumo, antecipando a finalização para um assunto que não tem fim, entendemos que a responsabilidade civil do poder público pela reparação dos danos patrimoniais e extrapatrimonias decorrentes das tragédias verificadas em Teresópolis e Região Serrana em 2011 e agora em Petrópolis, existe e é flagrante, decorrendo da atitude omissiva dos gestores, órgão da administração pública e fiscalizadores, que se escondem sob repetidas desculpas para não promoverem efetivas ações de prevenção, atuando reativamente, somente depois que tais tragédia ocorrem e às vezes com injustificável demora, diga-se, impondo seja reconhecida e aberta pelo Judiciário uma via larga e de mão única para que as vítimas encontrem a devida e justa reparação.
O responsável pela tragédia tem nome e não atende por “São Pedro”.
Marco Aurélio Benedito Alves
Advogado inscrito na 13º Subseção da OAB, Teresópolis
Diretor Tesoureiro e membro da Comissão de Políticas Públicas